Por Valmir Santos
A terceira e última semana do 2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades tangenciou as linguagens do circo e da animação. Nos espetáculos Memórias do palhaço Amoroso, da Companhia Pé no Palco, e Circo s/a, da Companhia dos Palhaços, os títulos já explicitam a remissão ao universo contido entre a lona e o picadeiro. Ambos trilham caminhos distintos. Contrastam uma criação de forte apelo visual, a primeira, com outra mais despojada, a segunda, sendo seus resultados subversivos aos pressupostos. Surpresa, a terceira montagem da semana, pela Companhia Manoel Kobachuk, injetou uma nostalgia à maneira da mirada artística do cineasta Federico Fellini. Cativa a presença em cena de um veterano da cultura de animação de objetos e bonecos, lá se vão mais de 30 anos, um homem que firma um diálogo cristalino com o espectador sem angustiar-se pela busca de efeito. Vamos passear, pois, por esses processos sem sugerir valoração dos mesmos. E lembrando que também foi reprisada a apresentação de Sobrevoar, da Companhia do Abração, montagem sobre a qual comentamos na semana passada.
A figura central do palhaço, como o interpretado por Pedro Bonacin, não se sustenta apenas com o nariz vermelho, o figurino e os adereços típicos. Sentimos falta do carisma, do timming, da gestualidade, do olhar dolente a contrariar o sorriso largo, da sapiência popular que essa máscara universal denota em suas particularidades. As presenças dele, do amigo que o mobiliza (por Daniel Kleiber) e da namorada (por Maíra Lour) são pontos demarcados de uma encenação hiperbólica em suas cores, luzes, projeções. Daí nosso alívio visual quando Amoroso finalmente reencontra o amigo no que parece uma ilha sem a poluição de informações. As canções compostas por Rosy Greca e cantadas em playback tampouco aliviam a distância endossada ainda pelas referências ao videogame, à internet, à motocicleta, recursos que soam como desvios daquilo que a peça pede ao espectador, desejosa de que ele não se esqueça de “regar as sementes essenciais” na vida. O espetáculo carece editar esses elementos todos, plasmar o que a palavra já enuncia poeticamente. Quando o aporte material excede, dá saudades da menor grandeza, escala que a Pé no Palco conhece como poucos.
De volta ao espetáculo, de título infeliz, aliás – Circo s/a sinaliza algo de oportunismo econômico -, Barreiros e Dias vão à cena com um roteiro mínimo com boa margem para o improviso, sustentam o enigma do que virá a cada número após o terceiro sinal. Eles quebram a quarta parede, optam por poucos elementos que sacam de uma espécie de empanada. O roteiro espelha a condição humana em suas tentativas e erros, a gangorra da vitória e do fracasso espreita cada um dos jogos propostos.
A capacidade de Barreiro e Dias de interagir com inventividade e prover sutilezas lembra o trabalho da dupla do Grupo La Mínima, de São Paulo, leia-se Domingos Montagner e Fernando Sampaio. A dupla curitibana da Companhia dos Palhaços também fez parceria com a Parabolé Educação e Cultura em Palmas pra que te quero, apresentada na segunda semana do Pequeno Grande Encontro. Circo s/a contrapões justo a teatralidade mínima que faltou em Palmas pra que te quero, que tem tudo para avançar em sua simbiose pertinente à música e às brincadeiras de mão.
Em Surpresa, transborda o encantamento por ver um ator veterano em cena com tanta verdade e convicção na defesa das pequenas histórias que surgem das caixas coloridas. Constrói um mundo sem truques, por assim dizer, em que tudo é revelado com o tempo estendido para perscrutar o mistério, o oculto, o prazer do primeiro contato das crianças com o admirável mundo novo que lhe é apresentado. Ainda que parte da plateia mirim já reflita a ansiedade dos pais ou responsáveis da sociedade em que vivem, certa impaciência que a Manoel não falta. A cada boneco ou mundo mimetizado (o circo, o castelo assombrado, o quintal, a bailarina), despontam fios de breves enredos encadeados um ao outro. Apesar da companheira de cena, Neiva Figueiredo, exibir um registro mais duro no tato com os bonecos e maquetes, Manoel Kobachuk e seus bonecos fundem a relação criador e criaturas, um cosmo paralelo e peculiar acessado por espíritos livres e leves, independente do peso da existência.
Balanço


A mobilização é legítima, ecoa o que já ocorre em outras praças do País, vide a organização do Teatro de Rua e do Circo por um lugar sob o sol das artes cênicas. Intuímos que a iniciativa será mais profícua quando estabelecer ponte com o Movimento de Teatro de Grupo que já está em curso em Curitiba. E vice-versa. Cito um exemplo. A luta dos núcleos de São Paulo em torno do Programa Municipal de Fomento ao Teatro – a Lei de Fomento que vigora desde 2002 e fruto de ativismo do Movimento Arte contra a Barbárie havia quatro anos, assembleias, corpo a coro com vereadores e secretarias, ocupação de galerias, etc -, enfim, essa luta não dissociou teatro para adultos e teatro para crianças. Sobrevento, Paidéia, Companhia do Feijão, Circo Mínimo e outros coletivos que transitam pelas duas vertentes contracenam com seus pares sem distinção de voz, relevando-se as diferenças estéticas, conceituais, ideológicas. O cisma não ajuda nenhuma das partes na hora de sentar para conversar e demonstrar representatividade diante de secretários de Cultura, vereadores, deputados ou senadores afeitos à causa da cultura. (Isso para não dizer do fundamental intercâmbio de concepções artísticas que raramente se dá). Superar idiossincrasias é que são elas. Ou a fratura é tão traumática que não comporta identificar o que é comum?
No plano da organização do Pequeno Grande Encontro, este é um território que também tem tudo para convergir à autonomia dos núcleos, tantas foram as vozes que acolheu. Vimos interlocuções, olho no olho e abertura para crítica e autocrítica nas presenças de Regina Vogue, Manoel Kobachuk, Fátima Ortiz, Renato Perré, Letícia Guimarães, gente que tem mais estrada e mostram-se abertos às gerações que vieram depois, com o talento e o ímpeto construtor de Nélio Spréa, Maurício Vogue, Fabiana Ferreira, Milene Dias e Rafael Barreiros, entre outros.
Reafirmamos a importância de o encontro ser abraçado por outros núcleos que não só a companhia idealizadora e realizadora de proa. No arquivo do blog do evento, vimos que a primeira edição, em 2009, já trazia mais espetáculos da Abração do que seus pares locais. O desequilíbrio na programação, que suscita conflito de interesse, foi repetido este ano com espetáculos do repertório abrindo e fechando o evento sob justificativa da insuficiência financeira que implicou o próprio cachê à metade. Apesar do discurso em direção ao outro, conclamando os criadores às rodas matinais em sua sede, às bandeiras coletivas, a prática não sincroniza. Faria muito bem ao Pequeno Grande Encontro descentralizar-se radicalmente, por mais que a Abração lhe seja precursora e proponente, um protagonismo notável que agora, talvez, necessita ser delegado ao coro do qual faz parte a ajudou a crescer e ser visto. É o que intuímos a partir da vivência e da escuta desses dias.
· * O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanhou o II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.
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