Quintal para os pés da imaginação - Por Valmir Santos

Foto: Lidia Ueta - Patricia Lion
As duas primeiras semanas do II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades, no Teatro José Maria Santos, teve dois temas recorrentes: a memória e a brincadeira. Elas têm a ver com as duas pontas da vida, a meninice e a velhice. Memória e brincadeira que não surgem estanques nas narrativas. Elas são entretecidas por palavras, objetos, bonecos, músicas, luzes e jogos verbais e espaciais emendados por atores para compor um quintal entre o céu e a terra. Terra em que hoje os pés mirins ou adultos raramente pisam.


Teimosinho e Mandão - Foto: Lidia Ueta - Patricia Lion
Em Teimosinho e Mandão, direção e adaptação de Edson Bueno para o livro Dois idiotas cada qual sentado em seu barril... (2003), de Ruth Rocha, o jogo de oposição lembra as figuras cômicas do branco e do augusto, o que se insinua ingênuo e o que se quer inteligente. Esses contrastes podem até sugerir uma leitura moral, mas, em regra, no picadeiro ou no palco não costumam carregar juízo de valor ou negatividade. Bueno é fiel ao espírito do livro e investe no ponto elementar dessa história: o conflito, matéria-prima do drama aqui tangenciado pela comicidade.
Nas entrelinhas de Teimosinho e Mandão, interpretados respectivamente por Marcelo Rodrigues e Raphael Rocha, estão os chamados “senhores da guerra”. A alusão bélica vem nas referências a munições, armamentos, territórios e diferenças de gostos que pautam a disputa mediada por bichos de pelúcia, cores, plantas – ou seja, os objetos ou adereços dizem mais do que as atitudes. Cada um deles veste uma capa de super-herói com a cor do adversário, azul e amarelo invertidos. Os barris cênicos de cada um viram seus respectivos baús dos quais sacam os brinquedos.
As atuações de Rodrigues e Rocha sublinham as ações físicas, endossam o nível de testosterona com ênfase tal que, da metade em diante da apresentação, apagam justo as sutilezas prenunciadas e parecem “jogar” só para a ala masculina da plateia com a qual estabelecem correspondência instantânea. A linearidade dificulta o trânsito personagem/narrador sem variações mínimas de voz e gesto. A peça da MR Produções Artísticas, leia-se Márcio Roberto e Centro Cultural Boqueirão, fica a meio caminho desse elogio à compreensão. A mensagem até chega do lado de cá, mas a transmissão é feita com ruídos.

Quando a criança era uma criança - Foto: Lidia Ueta - Patricia Lion
Mauricio Vogue interpreta e codirige com Richard Rebelo o monólogo Quando a criança era uma criança, uma criação francamente autobiográfica sob dramaturgia de Letícia da Rosa. Há uma sinceridade na presença do ator, um dos artistas mais profícuos da cidade. Vogue não inclina à mera caricatura para se passar por criança. A bordo dessa transparência enxergamos também a natureza autocentrada do projeto. A relação com objetos ou bonecos na tela plana de fundo não se revela viva, serve utilitariamente ao condutor que as descarta com a mesma velocidade com que despontam por meio das mãos da contrarregragem “oculta”.
Esse estado diluído de presença cria um campo de virtualidade nas relações com o espectador e com os demais elementos da cena na proporção que as vozes adultas da mãe e demais pessoas imaginárias são distorcidas, por exemplo, ou estilizadas em desenhos. Realização conjunta do Centro de Estudos de Teatro para Crianças, o Centec, e da Companhia Regina Vogue, o espetáculo dá a entender que o protagonista tem mais facilidade de vínculo com o robô e sua guitarra do que com amigos ou familiares. O figurino de macacão, à maneira dos astronautas ou aviadores, parece traduzir o ser encerrado em si, em seu quarto agora adolescente, em seu mundo. O frenético uso de projeções e trilha incisiva reflete uma necessidade constante de preencher a cena, o que acaba desviando o foco da criança do passado e do presente.
É sintomático o número de mágica abortado pelo intérprete, apesar de sinalizar com um número simples. Assim ele frustra um cadinho de magia, fixa-se pragmático. E há ao menos um momento de Quando a criança era uma criança em que Vogue consegue atingir síntese poética: a passagem da chuva que combina todos os recursos. Um “frame” no espetáculo que promete mais de largada e termina distante.

O gato & a dona Chica - Foto: Lidia Ueta - Patricia Lion
O gato & a dona Chica, soubemos depois, soma mais de duas décadas no repertório da Companhia Filhos da Lua, dirigida pelo também dramaturgo e manipulador Renato Perré, aqui ao lado de Edna Kallil – os bonecos são confeccionados por Maria Tereza Carvalho Silva, cofundadora do grupo em 1981. É uma surpresa conhecer na cidade um núcleo dedicado a essa modalidade popular do Nordeste. É como se Curitiba, de tantas afluências alemãs, italianas e afins cumprisse um ciclo do eterno retorno dos bonecos de luva oriundos da cultura medieval européia.
O que desponta, como não poderia deixar de ser com a bagagem da companhia, é a segurança no domínio da linguagem do mamulengo. Falas, gestos e perspectivas de cena convencem na expressão, tudo embalado por músicas igualmente tradicionais. Apesar da moldura da boca de cena da barraca circunscrever a área cênica no plano médio do palco, ao centro, a montagem consegue redimensionar a história em torno da cantiga Atirei o pau no gato, desconstruída de forma original. O ápice da transcendência é quando Dona Chica vira gata, ou seja, transforma-se no bicho que rejeitara. Essa metamorfose instiga a criança que, ao final, pergunta-se como foi que aconteceu a metamorfose e Perré explica, paciente. A generosidade é um dos trunfos desse artista que permanece com o seu boneco em punho, o Gato, deixando-se tocar e fotografar ao lado dos espectadores que o solicitam, e não o contrário. A Filhos da Lua equilibra a forma convencional e o frescor juvenil, conforma em palco frontal um bocado do ambiente solto do improviso que o mamulengo irradia em praça pública, rural ou urbana.

Palmas pra que te quero - Foto: Lidia Ueta - Patricia Lion
É instigante o ponto de partida de Palmas pra que te quero, da Parabolé Educação e Cultura. A obra elege as brincadeiras de mãos para apoiar uma dramaturgia, sobretudo, da gestualidade. Não intenta alcançar os parâmetros virtuosos da mímica, técnica que aparece mais como citação. Três dedos são elevados à categoria de personagens com seus respectivos apelidos, o menino Mata-piolho e as meninas Minguinho e Fura-Bolo. Pena que, traçado esse alicerce promissor, as opções de Nélio Spréa, codiretor com Rafael Barreiros, resultam refém do entretenimento simplificador. A despeito da performance habilidosa do trio Fernanda de Souza, Milene Dias e Barreiros, que harmoniza o timing de cena com a música instrumental tocada ao vivo por Souza e tem a plateia nas mãos, como se diz – Barreiros lança mão (olha o trocadilho!) de seu palhaço com propriedade, sem ofuscar suas colegas –, ainda assim a montagem não desenvolve o seu potencial para a teatralidade. Possui uma boa equipe para isso, mas soa engessada. Não enreda uma história, mas quadros acomodados à exposição dos jogos de mãos. A dramaturgia é frágil. Troca representação por demonstração. Reduz a plateia a auditório. E provoca indignação: qual a elevação humanista em repetir marcas de carros numa das brincadeiras, induzir desde já ao entorpecimento pelo consumo que é uma das principais pedras no meio do caminho? Eis algumas das contradições de Palmas pra que te quero, que envolve o público com a mesma força com que o afasta.
A anfitriã Companhia do Abração, idealizadora e realizadora do Pequeno Encontro, apresentou três espetáculos que, vistos em conjunto, dão conta do seu percurso histórico e estético desde 2001. Antes de entrar no mérito dos trabalhos, há um paradoxo evidente na programação, como apontamos na segunda roda de conversa ocorrida na sede do grupo, na manhã de segunda-feira passada. A Abração organiza o evento, ocupa as sessões de abertura e de encerramento. E a matemática se impõe inquiridora feito uma criança. Por que a Abração conta três peças em cinco sessões? Por que a Filhos da Lua apresenta uma obra duas vezes? Por que as demais companhias têm uma montagem cada para a respectiva tarde?
O desequilíbrio pode dar margem a ilações que, ao menos no âmbito do discurso e da prática verificados nas duas semanas, inclusive traduzidos em cena, não corresponderiam. A diretora Letícia Guimarães diz ter clareza quanto ao desdobramento e o atribui ao aperto no patrocínio público nesta segunda edição, o que implicou suspensão de montagens previstas e inclusão das três peças de sua companhia, com cachês reduzidos à metade, para cumprir as três semanas da agenda reservada no teatro. Essa disponibilidade tem a ver também com a capacidade de compreensão, planejamento e execução dos artistas da Abração ao revezar várias funções na sede administrativa, no afluxo de público espontâneo e vindos de escolas e entidades sociais convidadas que lotam as sessões no José Maria Santos. E tudo atrelado ao desafio maior do intérprete faz-tudo que é atuar por inteiro em meio às demandas.

De volta à recepção dos espetáculos, Sobrevoar (2010), Estórias brincantes de muitas mainhas (2007) e Sonho de uma noite de verão (2002) triangulam procedimentos constitutivos de uma linguagem que mira obsessivamente o apuro. A dramaturgia assinada por Guimarães e consolidada em colaboração galga o universo existencial mais comum aos adultos e, nem por isso, tratado com concessão. Estão lá a velhice e a ancestralidade, por exemplo. A linguagem cênica apóia-se na animação de objetos e de bonecos sem virtuosismo, combinando-a organicamente a um ator-criador, sujeito mais propositivo na partitura corporal e autônomo nas veredas simbólicas que abre no contato ao vivo.


Sobrevoar espreita o desejo humano invejado positivamente de deuses como Ícaro, o voo como metáfora da liberdade. Nada mais óbvio que evocar Santos Dumont, convenhamos, mas o texto o faz escapando ao lugar-comum. O álibi é visitar a infância do pai da aviação com inventividade. Registros enciclopédicos ou históricos não têm vez. As asas são da imaginação: livro, relógio, chapéu, bola, enfim, tudo se transforma ao contracenar com o quarteto de atores. É assim que módulos quadrados do cenário viram, súbito, o 14 Bis projetado no início do século XX. Surpresas assim causam reações como a da criança que soltou um “Nossa!” quando se encantou pela mágica da carta enviada de um ponto a outro do palco por meio do sopro invisível de um dos atores do elenco formado por Felipe Custódio, Moira Albuquerque, Negra Silva e Simão Cunha. Os senões vão para certos instantes em que a estridência da música concorre com a fala e o desenho de luz é efusivo. Acreditamos desnecessário o segundo final do espetáculo, como se fosse uma nota de rodapé para comunicar uma mensagem da qual já tinha dado conta: sim, todos devemos e podemos voar em todos os sentidos na vida. O adendo de um número musical à la cultura americana destoa do que vimos até então, uma mistura à brasileira e à francesa, ou seja, menos massificado.

Estórias brincantes de muitas mainhas - Foto: LidiaUeta - Patricia Lion
Em Estórias brincantes de muitas mainhas, o título adianta o tom fabular que o prólogo endossa: uma coreografia bem bolada no jogo dos atores com xícaras, pires e bule vermelhos dotados de outras funções, como a do nariz de palhaço. Albuquerque, Cunha e Custódio encaram velhinhos narradores de histórias, imigrantes ucranianos naturalmente inspirados na colônia daquele país radicada em Curitiba. Suas lembranças são estimuladas por uma explosão na riqueza de detalhes. O tapete, os figurinos e objetos coloridos, as geometrias e sincronismos temporais são atrelados à noção da memória ancestral, como na cena da sereia no mar, talvez uma remissão ao líquido amniótico, à Pachamama da cultura indígena quéchua, a Mãe Terra. O espetáculo capta a idéia de universalização de laços e sentimentos do pertencer, do elo de origem, do cordão umbilical rebobinado.

Sonho de uma noite de verão Foto: LidiaUeta - Patricia Lion
Também uma trupe de velhos está reunida para o chá da tarde em Sonho de uma noite de verão, na pele de Fabiana Ferreira, Cunha, Silva e Custódio. Shakespeare é pretexto para o encontro desses contadores de história com o bardo inglês, sendo o desempenho de Ferreira mais lapidado, na minúcia corporal e rítmica, porque no elenco desde o início, há nove anos, enquanto seus colegas substituem papéis no repertório. O roteiro de desencontros de dois casais, seres enamorados entre reis, rainhas, fadas e duendes, vira prato cheio para a Companhia do Abração dar vida a sapatos, gravatas borboletas, nos convencer da floresta encantada despojada e demarcada com panos e bambus cênicos. Desde o primeiro espetáculo do núcleo, portanto, o relógio da vida e seus ponteiros da aurora e do crepúsculo já estavam pulsando.


* - O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanha o II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.

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