Sobre o Workshop do dia 30 de março de 2007.

Por Francisco Gaspar

Graduado em Artes Cênicas, pela Universidade do Rio de Janeiro, Mestre e Especialista em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Tradutor do “Jogos para atores e não-atores”, de Augusto Boal e do “Ensaio sobre o gênero dramático sério”, de Beaumarchais. Professor de técnicas de Happening, que conjugam técnicas de improvisação com orientações de autores como Bertolt Brecht, Peter Brook, Augusto Boal e Carmelo Bene. Atualmente integra o grupo de estudos e pesquisas e também a docência da Companhia do Abração.


“Pirlimpsiquice”, conto de Guimarães Rosa foi o ponto de partida do nosso Workshop. O objetivo era fazer com que os participantes vivenciassem a face lúdica, sensível e fantástica da experimentação teatral, caracterizada pelo “pirlim” em contraposição à face teórica, científica e metodológica da “psiquice”. Como o velho João Rosa, pensamos esses dois lados do mundo para além, ou para aquém, de toda dicotomia e de qualquer separação entre gêneros. Nada de fantasia para um lado e realidade para outro, cada coisa no seu lugar como gavetas numeradas, arquivos mortos, etc. Não estávamos interessados em tomar as coisas pelo que são, mas por aquilo que elas se tornam, em relação umas com as outras.

O que nos tornamos em contato com uma obra artística? A leitura coletiva do texto já nos dá pistas. A escrita de Guimarães Rosa não é linear, não se encaminha para o fim esperado, não forma nem supõe um todo e não se pretende unidade orgânica. Ao contrário, é fragmentada, múltipla, com um ritmo que ora avança, ora retrocede. Esse ritmo não exige que o leitor entenda o significado da obra, mas que ele experimente o texto, no rastreio da sua materialidade. Na leitura coletiva isso é experimentado tanto quando se ouve a leitura do companheiro quanto a sua própria. É uma viagem acompanhada, ao contrário do ato solitário de ler em silêncio. Então, nos tornamos viajantes, mesmo sem sair do lugar. Viajamos por um universo de sensações e posturas, lendo, narrando e ouvindo. Ninguém melhor que o próprio Rosa para descrever a nossa viagem: “E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar”.
A leitura coletiva do texto não discrimina o ler, do ouvir e do falar, rompendo com a dinâmica dicotômica do emissor-receptor presente na leitura silenciosa. Na leitura coletiva, cada leitor doa elementos novos ao texto, dando-lhe sentidos inauditos. Gaguejos, balbucios, diferenças de ritmo e altura, repetições, dão ao texto um brilho novo que só existe no momento em que a leitura acontece. Por outro lado, essas posturas de fala e de corpo só são possíveis no encontro com o texto. É um processo de mútua afetação em que não se pode dizer quem age sobre quem, quem é autor e quem é leitor. Além de viajantes no mesmo lugar, nós nos tornamos também escritores na viagem com o texto.

Tornar-se outro, não é essa a grande viagem do teatro? Tornamo-nos sempre outra coisa no encontro com as personagens, fixas ou improvisadas. Mesmo como espectadores, entramos numa viagem que nos diferencia de nós mesmos, levados a conhecer novos universos, através do trabalho dos atores. O mesmo acontece com os jogos e exercícios teatrais.

Nos exercícios teatrais durante o workshop o objetivo foi levar os participantes a experimentar outros modos de agir, outras posturas e outras sensações, diferentes daquelas vividas no cotidiano. Enquanto na leitura experimentamos novas posturas no encontro com o texto, nos exercícios teatrais o encontro foi entre os corpos dos participantes. Basicamente os exercícios foram de seguir o parceiro. Seguir, perseguir, caçar, fugir, acompanhar, dançar, se arrastar, foram algumas das posturas experimentadas pelos participantes no contato mútuo. Tudo isso é muito diferente de imitar outra pessoa. Trata-se de participar de uma experiência em que os participantes são afetados pela presença física do outro. Na experiência, nos diferenciamos de nós mesmos, e nesse sentido os outros corpos podem nos facilitar ou impedir. Seguir pessoas que se movem com ritmo diferente do nosso nos obriga a experimentar novas posturas, novas atitudes. Mas o que importa é que novas experiências se traduzem subjetivamente como a constituição de novas sensibilidades. E uma nova sensibilidade quer dizer, sentir o mundo diferentemente, significa que nós nos tornamos outra pessoa.

Nos exercícios teatrais, experimentamos o poder de sermos diferentes de nós mesmos, de nos tornar outra coisa. Não se trata de ser, ou deixar de ser o que somos. Trata-se de experimentar a diferença dentro de nós mesmos. Experimentamos a diferença na leitura com o texto e com os exercícios teatrais. Nós nos tornamos outra coisa: viajante, escritor, outro. Nunca nós mesmos. O que nos tornamos em contato com uma obra artística? Pura experimentação.

A importância da experimentação para a educação é central em Pirlimpsiquice e também se tornou central no workshop. No texto, Guimarães Rosa opõe o ato livre da experiência à intencionalidade de uma educação voltada a transmissão de valores estáveis. No caso do texto, esses valores procuram perpetuar o poder da Igreja e do Estado na escola – a Virgem e a Pátria. Em Pirlimpsiquice, isso se dá quando os padres tentam montar uma peça cívica: “Os filhos do Doutor Famoso”. Mas, mesmo a história cívica, usada para transmitir valores, serve como catalisadora de uma experiência inaudita. A partir dela são criadas mais duas histórias. A do Gamboa e a “nossa estória”, como diz o narrador. A última, criação coletiva dos alunos, que não cessa de se reinventar, que não cessa de tornar-se estória, cada vez que alguém lhe acrescenta fato novo. E no final, essa é a estória que vai ao palco, causando espanto nos que assistem. Mas mais espanto ainda no narrador: “Mas – de repente – eu temi? A meio, a medo, acordava e daquele estro estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim?”.

Pirlimpsiquice serviu também para nós como catalisador de criações coletivas. Não somente nos exercícios teatrais, mas durante a avaliação final, quando usamos alguns neologismos presentes no texto para pensarmos a educação, não só a artística: Indesfecho, descreviver, inconfuso, tresentortar, perguntatividades, transvivendo, milmaravilhoso. Com esses neologismos pudemos pensar uma face da educação que não trabalha com fundamentos ou objetivos. Experimentar nunca é uma questão de início e fim, como diz o próprio texto. É sempre pelo meio que se experimenta; entre o texto e o leitor, entre dois atores, entre os atores e a platéia, entre pessoas que participam de exercícios teatrais. E se as coisas não tem fundamento, aprender torna-se o ato de inventar, a si mesmo e o mundo. Pura criação.

Mas não se cria do nada. É preciso tomar o mundo, a nós mesmos, como matéria para a criação. Não aprendemos com frases feitas e discursos prontos, mas no indesfecho, no inconfuso do que ainda está por ser criado. Assim não há limite entre a arte e a vida, entre a verdade e a fantasia. Criar é confundir ator e personagem, ou seja, tornar-se a personagem personificante: “Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens personificantes. Assim perpassando, como a de nunca naturalidade, entrante própria, a valente vida estrepuxada.”

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